quinta-feira, março 30, 2006

A história do espantalho (era a merda que me vai na cabeça)


Era uma vez uma camponesa que, como o próprio nome indica, levava a sua vida a cultivar os campos da sua propriedade, herança do seu pai e que por isso ela muito estimava e cuidava com todo o amor e carinho que ela julgava ter.

Apesar desta herança e de todo o trabalho que o seu pai tinha tido para tornar os terrenos desta propriedade mais férteis e produtivos e mesmo com todo o fertilizante que a camponesa lhe deitava, os campos continuavam pouco produtivos, pensava ela, devido à sua fraca qualidade.

Fazendo parte da cooperativa agrícola lá da região, todos os camponeses e camponesas, partilhavam as suas experiências e boas práticas. Numa dessas conversas, reuniões ou como lhes quiserem chamar, descobriu a camponesa que o insucesso dos seus terrenos se ficava a deve à não existência de um espantalho na sua propriedade. Vai daí e resolve fazer um.

Meteu mãos à obra e durante alguns anos, foi fazendo / tendo espantalhos mais ou menos imperfeitos e rudimentares, até que, como com a experiência de muitos espantalhos falhados e remendos despropositados, decidiu construir um novo espantalho de raiz, com roupas, vestuário, calçado e até penteado da moda.

Dedicou-se de toda a alma, coração, ser e tudo o mais que tinha (tempo, dinheiro, etc.) e fez o melhor espantalho da região! No entanto e mesmo assim, não satisfeita foi aperfeiçoando retocando daqui e dali, substituindo roupas, posições, penteados e o seu espantalho ficou lindo, o melhor da região, mais eficaz, bonito e moderno, um orgulho para a camponesa que a todos o mostrava (ou pelo menos assim o queria fazer, mas nem sempre conseguia porque os espantalhos não se mexem e nem todos iam ter com o espantalho para o ver).

Roupas modernas, calçado do bom, uma peruca com o ultimo penteado inventado pela moda; todos que o viam gabavam o espantalho, a sua beleza e ao mesmo tempo simplicidade, porque... sim um espantalho é sempre um espantalho, simples e puro boneco que espanta algo e por isso simples na sua essência, porquanto a sua função na vida é apenas uma, espantar. Coisa que o nosso espantalho fazia na perfeição, pois espantava os pássaros que outrora dilaceravam as culturas da camponesa, roubando-lhe o fruto do seu trabalho, uma pouco da sua vida. Assim tornou-se a camponesa numa das mais felizes, realizadas e promissoras produtoras da região. E a qualidade e amor com que tinha feito e aperfeiçoado o seu espantalho eram evidentes, pois o mesmo continuava firme, sorridente e ao mesmo tempo assustador, mesmo com o passar dos anos, chuva, frio e demais intempéries.

A família da camponesa também veio ver o espantalho e verificar por si a sua fama e já agora ver se tinha o proveito que a fama lhe dava. Ficaram orgulhosos do trabalho da sua parente e ficaram também a gostar do espantalho, tal era a confusão que já ia nas suas cabeças, considerando-o já um membro da sua família. Coisa para a qual a camponesa, solteira e sem pretendentes sérios, também contribuiu com a “apresentação oficial” que fez do seu espantalho, do seu mais que tudo, da sua criação, da sua imagem (porque o autor deixa sempre algo de si na obra que faz).

Os anos passavam e a camponesa cuidava do seu espantalho, para ela já homem imóvel no meio dos seus campos que nãos ó espantalho, para os pássaros já um humano com forma de espantalho que, não lhes fazendo mal, afugentava-os dali com o respeito que os filhos do mesmo pai devem uns aos outros. Tudo estava perfeito, mas... há sempre um mas...

A camponesa começou a exigir mais do espantalho, coisa que por si é difícil de compreender. Que se pode exigir mais a um espantalho? Que nos faça a almoço ou que nos aqueça os pés nas noites frias de Inverno?

Tentou continuar a melhorá-lo, mudar-lhe as roupas mais frequentemente, fez-lhe outros penteados, pôs-lhe e tirou-lhe barba, perfumou-o com as melhores essências e tudo o mais que se possa imaginar, mas continuava descontente. Após quase quatro anos de perfeita simbiose entre camponesa e espantalho, criadora e criado algo se passava de estranho, uma insatisfação, uma... insuficiência, uma angústia por parte da camponesa que iam afastando os dois, transformadora e transformado, autora e obra; decidiu então desfazer-se do espantalho, deitá-lo fora! E se mal pensou, pior o fez e pessimamente o executou e o espantalho foi para ao meio de uma silveira, qual beata que se atira, segundo os maus costumes do nosso país, pela janela de um automóvel em andamento, qual animal doméstico abandonado nas férias do verão, por donos inconscientes e pouco merecedores da consideração que o nome dono lhes possa trazer.

Apesar de tudo e da sua convicção de que a mudança era tudo o que ela queria, chorou pesarosa, amarga e sentidamente no momento de o fazer, de se despedir da sua obra, criação da sua mente, imagem do seu desejo. Três dias antecediam a data do seu 27º aniversário, o primeiro desde há quatro anos e alguns poucos meses que passava sozinha, sem o ter por perto nos seus campos... Sentia-se sozinha, desamparada, amargurada, perdida, mas ainda assim tinha decidido abandonar o seu espantalho e fê-lo, teimosa, orgulhosa e inesperadamente, quer para a dona quer para o “possuído”...

De tempos a tempos ia espreitar o seu espantalho à silveira. Ainda não tinha conseguido desfazer-se totalmente a nível sentimental do seu espantalho, da sua companhia ao longo dos 4 anos e alguns poucos meses que tinham passado juntos. Tentou por algumas vezes retirar, em momentos de desespero e dúvida mais afincadas, o espantalho da silveira, mas ou como se o espantalho se agarrasse à silveira com unhas e dentes (que não tinha) ou como se a silveira ferisse o espantalho de morte com os seus espinhos (e os espantalhos não morrem de ferimentos), nunca conseguiu trazê-lo de novo para os seus campos e cuidar dele e devolver-lhe o estatuto de “o espantalho dos seus campos”, novamente. A silveira ia crescendo, o tempo passando, dias, a silveira crescia, semanas, o espantalho perdia-se, meses, até que silveira e espantalho ficaram como que um só; Silveira Espantalho ou Espantalho (da) Silveira, como se nome de pessoa tivesse já também.

Assim e como sabemos que a distância, tempo e invisibilidade tudo atenuam, tudo emudecem, foi-se convencendo a camponesa que teria que ter a companhia de outro espantalho. Continuava a ir tentar ver o seu espantalho de sempre, mas a silveira tinha-o engolido e... pensava ela... estava perdido para sempre... Andava triste a camponesa, cabisbaixa, saudosa do seu espantalho, que ela tinha criado e depois banido. Que ela tinha conscientemente afugentado, como ele fazia com os pássaros que espantava dos campos da sua camponesa.

Numa das reuniões da cooperativa a que a camponesa continuava religiosamente a pertencer e participar, calho em conversa com um camponês saber que este tinha no seu armazém um velho espanta-lho, segundo ele, quase novo e pouco usado que lhe poderia ceder. A camponesa, pensando que iria esquecer para sempre o Espantalho (da) Silveira, aceitou a oferta, acolheu o “novo velho” espantalho precisamente cinco meses depois de ter deitado fora a sua criação primeira e original e única na vida, para a silveira.

A camponesa, não tendo ainda esquecido o precedente no género espantalho a este último dado... Ah, vamos descrever este espantalho...

Desgrenhado na sua peruca, desbotado nas cores das suas vestimentas (que outro nome para os panos, vulgo trapos, que o cobriam seria difícil de arranjar), no trajar antiquado e fora de moda, nos buracos tidos pelo seu calçar, digamos que tinha um ar muito mais assustador e medonho, enfim de espantalho que o seu antecessor. Poderia estar, por isso mesmo, contente a camponesa, mas... nem por isso.

As visitas ao Espantalho da Silveira (doravante sempre assim o chamaremos, porque a relação camponesa espantalho apenas poderá ser explicada pela humanização do mesmo e como todos os humanos têm que ter um nome assim se chamará ao espantalho primeiro daqui em diante), continuaram, apesar de já ter novo espantalho instalado nos seus campos, na sua vida, na sua... mente? Mas o coração, ai o coração... Ele não fala mas sente, ele não discursa mas consente, ele não impede mas sofre...

Estava assim a vida da nossa camponesa neste indecisão, sim ou sopas, sopas ou sim, dias atrás das semanas que antecediam os meses e perfariam os anos e as coisas continuavam; as visitas escondidas à silveira, o novo espantalho nos seus campos. A sua produção entretanto baixara, porque o “novo velho” espantalho também não espantava como o outro (da) Silveira o fazia os pássaros, estes vinham pousar-lhe em cima a descansar depois da comezaina que faziam com os cultivos da camponesa, talvez num hábito adquirido nos tempos em que ainda estava de serviço noutros campos de outro camponês, noutro tempo, bem mais atrás do que o presente em que vos falo desta história.

A camponesa, estranhamente, nada fazia para inverter esta situação; não fazia um novo espantalho, não remodelava o que lhe fora oferecido, mas continuava a visitar o Espantalho (da) Silveira às escondidas. A imaginar e recordar tempos antigos, idos em que ele estava no seu lugar no meio dos campos, tudo corria bem, os pássaros fugiam e as culturas prosperavam. Tão diferente de agora, tão mais simples do que o presente.

Um dia, como que por encanto a silveira desapareceu e com ela o Espantalho (da) Silveira. Nada! A camponesa que viera em mais uma das suas visitas escondidas, verificou o lugar, espaço e envolvente a ver se estava no sítio certo, não lhe teriam sido as lágrimas que ainda vertia que lhe tivessem toldado a vista e, esta última, enganado os pés no caminho a seguir. Mas não estava tudo certo, menos a inexistência da Silveira do Espantalho e do Espantalho (da) Silveira, ou... ao contrário ou ao invés do contrário ou...

Foi para casa apreensiva, que teria acontecido? Onde estariam Silveira e Espantalho [(da) Silveira] ido parar? Sentiu pela primeira vez e depois de visitas escondidas imensas que tinha feito que se tinha enganado, que afinal lhe fazia falta o seu Espantalho (da) Silveira, a sua criação, obra-prima que, afinal, mesmo depois de deitada fora, era importante nas visitas ás escondidas que lhe fazia e que assim, sem a camponesa se aperceber, lhe dava alento, força e animo para continuar. Agora via, mas agora... onde estava ele? Quem o teria levado? Nem a silveira tinha escapado e por isso nem de conta poderia fazer que ele se encontrava ainda ali na e da silveira.

Agora, ao olhar para o seu “novo velho” espantalho sentia a angústia sob a forma de um nó cego e apertado na garganta, uma incerteza quanto ao futuro um desgosto em relação ao presente. Achava o “novo velho” espantalho mais feio ainda do que era, mais... quase até ridículo, se é que os espantalhos o podem ser sem isso passar a ser uma qualidade dos mesmos.

Sem o seu Espantalho (da) Silveira estava sozinha, vazia, Seria feliz, claro (se é possível prever o futuro a nós mortais aspirantes a escritores de histórias parvo cómicas sem qualquer encanto ou charme de graçola farsola, forçada e ineficaz), mas sem uma parte de si, da sua criação. Por si construída, por si aperfeiçoada, imagem do seu rosto, sombra do seu gostar, sol do seu poder, amor do seu criar...

Sabemos hoje, alguns anos decorridos sobre tudo isto, que o Espantalho (da) Silveira ganhou vida e do nome lhe saltou para o corpo de espantalho empalhado a vida que de humano só teria mesmo o nome e nada mais. Transformou-se e homem se fez, formoso, bonito, bem vestido como estava na sua forma de “assusta pássaros” criada pela camponesa nos seus dias felizes e dourados.

Sabemos também que o Espantalho, agora Homem (da) Silveira, foi ver a camponesa, porque a conhecia, lembrava-se de tudo, tudo recordava e saberia que ela era para ele assim o que ele tinha sido para ela (e continuava a ser, só que...). Viu o outro nosso conhecido “novo velho” espantalho no seu posto, amargurou-se, sentiu pela primeira vez, o sabor ácido do desalento, da derrota e foi-se, voltou costas, partiu, desapareceu, com a silveira que cortou e a vida que ganhou mas não saboreou.

A camponesa venda as pegadas do seu antigo espantalho, agora Homem (da) Silveira, reconheceu-as e seguiu-as, alimentando o desejo ardente de o encontrar e descobrir como aquilo tinha sido possível, quem andaria com o calçado do seu desaparecido Espantalho (agora Homem sem ela saber) (da) Silveira. Mas não encontrou.

Primeiro porque o Espantalho, agora Homem (da) Silveira tinha uns novos sapatos e o seu rasto era assim, perdido pela camponesa, que desconhecia a marca que os seu novo calçar deixava no pó da estada.

Segundo porque mesmo sem um novo calçado o Homem, ex-Espantalho (da) Silveira, na pressa de fugir tinha tirado os sapatos, para melhor correr e se distanciar daquele lugar tão maldito agora e outrora tão agradável lhe tinha sido (as coisas curiosas da vida).

Terceiro porque ele agora Homem se tinha cruzado com a camponesa, mas esta não o reconhecia no seu novo papel nesta história. Afinal era um espantalho que ela procurava e cruzara-se era com um homem e isso... está longe das capacidades humanas, compreender ser possível.

Quarto porque ele também não quereria ou poderia reconhecer a pessoa seca e amargurada que a camponesa, com o passar dos anos que saltando fizemos acontecer, nesta história, se tinha tornado. Ele lembrava-se dela linda e sorridente, jovem e acolhedora, amiga e carinhosa, querida e afectuosa, companheira, amistosa e esta camponesa de hoje, não era a camponesa que ele conhecia e, reconhecia agora que era humano, amava.

Quinto... porque a história acabou e no fim... falta sempre qualquer coisa, a todas as boas histórias, quanto mais às mal contadas, mal escritas e mal pensadas.

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