sexta-feira, novembro 03, 2006

Em Soeirinho, dia 1...


Lá fora chove e os dias sucedem-se num torpor de escuro e claro que se desfiam com a mesma calma que a chuva nos encharca, por ser fraca, predominantemente fraca, mas ainda assim rejuvenescedora.

As casa vão caindo, umas, ficando livres, outras, com o desaparecer das pessoas que, ou procuram melhores condições de vida (que nunca encontram, porque isto aqui continua a ser um pedaço muito grande do céu que temos, mais ou menos certo e reservado para todos) ou porque, como ordem natural das coisas que, graças a Deus a ciência e a evolução ainda não controlam, vão falecendo quando os seus dias já excedem aqueles que o corpo suporta saudavelmente. Carregados de privações de toda a ordem, que a vida aqui não era fácil, mas era alegre e cheia. Tempos idos...

Era cheia de paz e imensidão, a mesma que vejo e inspiro agora para me confortar o espírito, poluído e corrompido com as grandes cidades, as coisas tecnologicamente avançadas e a evolução que nelas se faz sentir.

Tempos idos... Tempos de saber viver e partilhar, observar e aprender, escutar... Tempos idos...

Levarei comigo tudo isto como levo sempre que cá venho e que vai curando todas as minhas feridas, as mesmas que a civilização me vai fazendo, sem olhar a meios, sem ter pausas ou intervalos de qualquer forma, teimosamente, ininterruptamente, sempre, porque sim!



O apelo de tudo isto que por aqui absorvo e observo é imenso! Olhar pela janela e ver que o mundo ainda tem paraísos, mesmo e apesar de toda a destruição que semeamos à nossa volta, sob a égide do homem evoluído e sábio, que faz, acontece e transforma a seu belo prazer e conforto; fogos florestais que dizimaram (para sempre) a floresta nativa, os pinhais e matos, lixeiras que poluíram (momentaneamente) as nascentes límpidas, construções desenquadradas e desenfreadas que ferem a vista, etecetera, etecetera. Tudo e tudo em nome da evolução que felizmente não tem vencido todas as barreiras que lhe são impostas pelo “nosso” ilustre, distinto e equilibrado planeta Terra. Tudo o que é mau e desprezível, vai ainda sendo vencido ou ignorado, por aqui...

Felizmente para mim, infelizmente para os que aqui vivem ou se querem fixar, pois o trabalho escasseia. Sem destruição, não há evolução e sem evolução, não há trabalho, emprego... Mas vai sendo a sina deste país; tudo o que ainda resta de puro, é abandonado, esquecido, desprezado, remetido para um lugar no fundo, bem no fundo do baú, onde, mesmo que se vá procurar, nunca se chega, nunca se encontra, de tão fundo que está, esquecido e esquecido irá continuar. Eu agradeço por isso...

O silêncio... O silêncio que se sente e não se sabe o que é nas cidades. Agradeço ao vento por não soprar, para poder “ouvir” o silêncio, porque, um dos poucos sinais de evolução por aqui, as torres eólicas, estragaram para sempre o prazer de “escutar” o silêncio, o pesado silêncio, com o seu som rotineiro e perturbador: vuuuuum, vuuuuum, vuuuuum...

Aqui não há Internet, a TV falha ao sabor de um retransmissor, longe daqui, muito longe, os telemóveis não têm rede a maior parte do tempo e a luz vai e vem conforme as trovoadas, mais fortes ou mais fracas, conforme o dia mais escuro, devido às nuvens pesadas ou mais claros, do sol abrasador de Agosto.

Volto a olhar pela janela e contemplo todo o esplendor magnífico da criação, toda a obra de Deus. Sim... A isto ter sido criado por mero acaso, antes prefiro acreditar que “alguém” está por trás de tanta perfeição, beleza, magnificência, superioridade... “Alguém” que terá que ser imensamente mais inteligente e sapiente que nós todos, os evoluídos, ou queremos ser ultrapassados por um mero acaso numa explosão originadora e que mesmo assim não vamos compreendendo todos os pontos resultantes? Prefiro a primeira hipótese criadora, nem que mais não seja pela minha sanidade mental e (pouco) orgulho pessoal que me resta...



Tudo é equilibrado, tudo é perfeito! Desde a chuva que cai e encharca a terra e fortalece as fontes cansadas de mais um verão esgotante e violento por que passaram, cada vez mais violento com o passar dos anos... Até às árvores que mais ou menos espontaneamente teimam em continuar a povoar estas despidas serras, lutando contra a incúria dos homens e a violências dos fogos que as destroem em menos de nada...

Os dias sucedem-se como as linhas que aqui escrevo, sem destino, rebeldes, sem planos, rumo ou sentido. Os dias, tal como estas linhas passam-se ao sabor daquilo que temos cá dentro e que procuramos encontrar e conhecer. Os dias aqui são felizes, como o foram todas as gerações que aqui viveram e construíram também este lugar, com os seus socalcos, caminhos, carreiros, fontes, casas...

Os dias vão continuar, com ou sem chuva, com ou sem evolução e, espero e sinto que, por aqui, a paz vai também continuar a imperar sobre todas as coisas. Assim o quero e espero!

Sinal que a evolução não conseguirá entrar nestas serras, rasgar as suas entranhas e modificar tudo, esvaziando-as da sua essência. Estas serras, as mesmas que resistiram aos caminhos, fogos, poluição, investidas dos socalcos e dos homens, as mesmas que hoje continuam a querer abraçar todos os que aqui vêm, com o seu esplendor imenso de paz, reflexão e conforto.

As minhas serras!

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